Diana Ribeiro Duarte, Pedro Capitão Barbosa, e João Cortes Martins, da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, explicam a evolução dos pressupostos jurídicos nos fundos de capital de risco.
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TRIBUNA de Diana Ribeiro Duarte, sócia, Pedro Capitão Barbosa, associado principal, e João Cortes Martins, advogado estagiário, na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados.
Nas últimas duas décadas, a evolução dos pressupostos jurídicos que regem os organismos de investimento coletivo em Portugal, nomeadamente os fundos de capital de risco, tem sido caracterizada por uma intensa atividade legislativa que se deve em grande parte à necessidade de transpor diretivas europeias (nomeadamente a Diretiva 2011/61/UE, a AIFMD) e de as articular com outros instrumentos legislativos europeus, bem como com o enquadramento jurídico português pré-existente para este tipo de veículos de investimento (que remonta aos anos 80).
Esta articulação provou ser um desafio para o legislador português, que (como em muitas outras áreas da regulação económica) teve de construir novos conceitos e práticas que surgiram de uma fonte exógena (direito europeu) e, ao mesmo tempo, encontrar soluções que proporcionassem um mercado competitivo para as gestoras de capital de risco desenvolverem as suas atividades. Continuam a existir, no entanto, vários entraves à consecução deste objetivo e o regime jurídico para a gestão de veículos de investimento em capital de risco continua a ser uma teia intrincada de regras nacionais e europeias que permanece inacessível a todos, exceto aos profissionais jurídicos da área e às equipas da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) que contactam diariamente com estes assuntos.
Por exemplo, as gestoras de veículos de investimento em capital de risco acima dos limites da AIFMD estão sujeitos às disposições do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, aprovado pela Lei n.º 18/2015 (Regime Jurídico do Capital de Risco), mas também a algumas (mas não a todas...) disposições aplicáveis aos fundos de investimento alternativos previstas no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro (RGOIC) através de um sistema complexo de referências cruzadas (que dá origem a muitas questões interpretativas) e também (embora, nesse caso, não existam tais referências cruzadas) às regras estabelecidas no Regulamento Delegado (EU) n.º 231/2013, de 12 de dezembro de 2012.
Esta foi uma das razões pelas quais se pretende agora simplificar e rever a legislação existente sobre gestão veículos de investimento em capital de risco. Assim, recentemente, a CMVM colocou em consulta pública um projeto de diploma de um Novo Regime de Gestão de Ativos (RGA), o que implica uma revisão completa do Regime Jurídico do Capital de Risco, bem como do RGOIC, fundindo estes dois diplomas num só.
Com esta revisão, pretende-se criar um regime jurídico unificado para o setor da gestão de ativos (incluindo capital de risco) que pretende ser mais simples, mais coerente, mais credível, centrado numa abordagem baseada no risco e na supervisão ex-post (em vez de processos de autorização onerosos e morosos) e, em particular, eliminando a regulamentação excessiva construída sobre as disposições da Diretiva pré-existentes (ou seja, gold-plating).
II. IMPACTO DA RGA NA INDÚSTRIA DE CAPITAL DE RISCO
O RGA regulamenta, de forma integrada, o regime aplicável à gestão de ativos, unificando a aplicação da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (a Diretiva OICVM) e da AIFMD.
Os principais impactos do proposto RGA na gestão de veículos de investimento em capital de risco são os seguintes:
A. Atividades permitidas
O RGA estabelece que as gestoras de veículos de investimento em capital de risco (incluindo as pequenas gestoras, ou seja, abaixo dos limites da AIFMD) serão capazes de gerir todos os tipos de fundos de investimento alternativos (v.g. fundos de crédito, hedge funds e outros fundos alternativos que investem numa grande variedade de ativos), com exceção dos fundos imobiliários, desde que pelo menos um desses fundos seja um fundo de capital de risco.
Além disso, as grandes gestoras de veículos de investimento em capital de risco (acima dos limites da AIFMD) podem também prestar serviços de gestão de carteiras e consultoria de investimento, enquanto as pequenas gestoras de fundos de capital de risco podem investir por conta própria sem necessidade de uma autorização especial da CMVM para o efeito.
B. Simplificação dos procedimentos de constituição
As gestoras de veículos de investimento em capital de risco pequenas não são obrigadas a demonstrar, ex-ante, os requisitos organizacionais necessários para gerir os veículos de investimento em capital de risco (a verificação dos requisitos de adequação ex-ante para diretores e acionistas qualificados permanece). Além disso, os prazos para conceder a autorização são reduzidos para 30 dias. O capital social mínimo para estas entidades foi também reduzido para 75.000,00 Euros.
O gold plating da AIFMD está igualmente a ser eliminado do processo de constituição das grandes gestoras de fundos de capital de risco e propõe-se que apenas sejam aplicáveis os requisitos organizacionais que resultem da legislação europeia. A aprovação desta proposta representaria uma flexibilização significativa dos requisitos para a autorização destas entidades. Os prazos para a concessão desta autorização foram também reduzidos.
C. Regras para a substituição de gestoras de veículos de investimento em capital de risco
O RGA estipula que a substituição da entidade gestora veículo de investimento em capital de risco não está sujeita à autorização da CMVM, requerendo apenas um aviso ex-post ao regulador. Dado que o Regime Jurídico do Capital de Risco era omisso nesta matéria, este esclarecimento é agora útil para sedimentar a segurança jurídica tanto para investidores como para as próprias gestoras.
D. Eliminação da estrutura do investidor de capital de risco
Os investidores de capital de risco são sociedades especiais de capital de risco obrigatoriamente constituídas como sociedades unipessoais por quotas ao abrigo do artigo 14 do atual Regime Jurídico do Capital de Risco. No entanto, dado que (i) esta estrutura regulada nunca granjeou aceitação junto dos investidores e que (ii) os interesses subjacentes à sua constituição são apenas os interesses privados do seu único sócio e de nenhum outro investidor (i.e. não faz sentido esta figura ter um enquadramento regulatório, pelo menos na perspetiva da gestão de ativos se apenas forem servidos os interesses de uma pessoa), a CMVM considera que não existe interesse material em manter esta entidade jurídica no novo RGA.
E. Período de detenção dos investimentos em capital de risco
É implementado um período de detenção máximo de 12 anos para investimentos em capital de risco pelos veículos de investimento em capital de risco (fundos ou sociedades). Isto representa uma mudança em relação ao regime jurídico anterior que permitia aos veículos de investimento em capital de risco terem prazos de investimento muito longos.
Esta solução parece ter como objetivo orientar os investidores com longos horizontes de temporais de investimento para outros tipos de estruturas de investimento, nomeadamente os chamados Fundos Europeus de Investimento a Longo Prazo (ELTIF). Os ELTIF são um meio de investimento alternativo europeu harmonizado (aprovado pelo Regulamento (UE) 2015/760) que se destinam a investir em projetos ilíquidos a muito longo prazo (nomeadamente infraestruturas). Ao contrário dos veículos de investimento em capital de risco ao abrigo do RGA, os ELTIF geralmente não têm limitações de tempo para os seus investimentos.
F. Montante mínimo de investimento
A subscrição mínima por investidor de 50.000 euros é eliminada, oferecendo consequentemente aos investidores não profissionais mais opções de investimento.
G. Eliminação do limite para o investimento em valores mobiliários admitidos à negociação
Outra alteração importante é a eliminação do limite máximo de 50% para o investimento em valores mobiliários admitidos à negociação num mercado regulamentado veículos de investimento em capital de rico, que deve ser lida em conjunto com a proposta de referidos veículos terem uma participação mínima de 20% de cada uma das entidades cotadas em que investem.
O objetivo parece ser o de encorajar a constituição de fundos buyout para adquirir empresas cotadas (e não, pelo contrário, permitir que veículos de investimento em capital de risco façam investimentos minoritários em empresas cotadas, que devem ser deixados a OICVMs ou fundos de investimento alternativos em valores mobiliários líquidos).
H. Emissão de obrigações
Esclarece-se agora que os fundos de capital de risco podem emitir obrigações para obter financiamento de investidores externos (uma questão que já era debatida anteriormente do ponto de vista jurídico).
III. OBSERVAÇÕES FINAIS
Numa altura em que a angariação de capital e a realização de investimentos nos mercados privados ainda estão a estabelecer novos recordes a nível mundial, o momento parece oportuno para reformular o regime jurídico do capital de risco em Portugal. De facto, se aprovado com estas características, o RGA introduzirá alterações significativas no regime jurídico aplicável aos veículos de investimento em capital de risco e às suas respetivas gestoras.
Podemos antecipar que o novo diploma poderá estabelecer um ponto de viragem no mercado português de gestão de património privado. Entre outros aspetos, autorizações mais rápidas e menos onerosas e mais possibilidades de visar investidores de retalho irão definitivamente incentivar a criação de novas gestoras e aumentar a atratividade da indústria portuguesa de capital de risco.
Como referimos acima, no entanto, a aprovação do RGA está ainda numa fase preliminar (neste momento a CMVM está a recolher comentários e contribuições de agentes do setor e outros interessados antes da proposta chegar ao Governo para iniciar os procedimentos legislativos formais - que se espera que ocorram ainda durante o primeiro semestre de 2022) e poderá ser objeto de alterações relevantes.