Finalmente o MICA: o primeiro passo da UE para a regulação de criptoativos

Márcio Carreira Nobre e Delber Pinto Gomes. Créditos: Cedida (TELLES)

TRIBUNA de Márcio Carreira Nobre, sócio coordenador da área de Financeiro e Mercado de Capitais; e Delber Pinto Gomes, associado da área de Financeiro e Mercado de Capitais, na TELLES.

Desde 2018 a União Europeia tem vindo a trabalhar na criação de um ambicioso quadro regulamentar para impulsionar o setor das tecnologias baseadas tecnologias de registo distribuído (as DLT technologies ou, na sua versão de utilização mais conhecida, blockchain), em que a emissão de criptoativos é a principal base de aplicação destas tecnologias.

Assim, chegou a um acordo político em outubro de 2022 sobre o Regulamento dos Mercados de Criptoativos. Este regulamento foi recentemente ratificado pelo Parlamento Europeu, tornando-se assim o primeiro quadro regulamentar para este tipo de instrumentos a nível mundial.

O Regulamento dos Mercados de Criptoativos, mais conhecido como MiCA (Markets in Crypto Assets), é o diploma europeu que estabelece um marco regulatório para os ativos virtuais que utilizam tecnologias baseadas em blockchain, regulando igualmente a sua emissão e a prestação de serviços relacionados com criptoativos e stablecoins. Este regulamento, aprovado em 20 de abril de 2023 pelo Parlamento Europeu e publicado em 9 de junho (Regulamento (UE) 2023/1114 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2023), é pioneiro e abre caminho para a regulamentação do setor noutras jurisdições. Esta normativa já entrou em vigor, embora seja apenas aplicável a partir de meados de 2024 e no início de 2025, tendo como objetivo posicionar a Europa como uma região atrativa para este sector.

O MiCA abrange os emitentes de criptofichas e os prestadores de serviços a investidores em criptoativos, tendo como principais objetivos a proteção dos consumidores e dos investidores, o reforço da estabilidade financeira e da inovação, o combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo relacionado com a utilização de criptoativos e a proteção do Euro enquanto unidade monetária com curso legal na União Europeia.

O MiCA define criptoativos como sendo “uma representação digital de um valor ou de um direito que pode ser transferida e armazenada eletronicamente, recorrendo à tecnologia de registo distribuído ou a uma tecnologia semelhante”. 

É a partir desta definição que é desenvolvida uma taxonomia que diferencia os criptoativos em “criptofichas referenciadas a ativos” (ART - asset referenced tokens), “criptofichas de moeda eletrónica” (EMT – electronic money tokens), e as “criptofichas de consumo” (utility tokens). 

Assim, os principais criptoativos contemplados pelo MiCA são:

  1. Criptofichas referenciadas a ativos (ART), que têm por objeto manter um valor estável por referência a qualquer valor ou direito, ou a uma combinação de ambos, incluindo uma moeda ou moedas oficiais. Esta categoria inclui todos os criptoativos que não sejam qualificados como tokens de moeda eletrónica e cujo valor seja garantido por ativos. Os ativos em causa poderão ser, por exemplo bens imóveis, obras de arte físicas (excluindo claramente a arte digital e artigos digitais colecioniáveis), ouro, pedras preciosas, para além de moedas em curso legal;
  2. Criptofichas de moeda eletrónica (EMT), que se baseiam no valor de uma moeda oficial, com curso legal, para manter um valor estável. A diferença entre os ART e os EMT é a configuração da referência que suporta o preço da moeda. No primeiro caso, são utilizados ativos ou um conjunto de moedas, enquanto o segundo utiliza uma única moeda, o que o aproxima do conceito de moeda eletrónica; e
  3. Criptofichas de consumo, que não têm o estatuto de fichas baseadas em ativos ou de fichas de moeda eletrónica, incluindo as chamadas "utility tokens", que são utilizadas para aceder e utilizar serviços ou produtos fornecidos pelo próprio emitente da ficha. Ao contrário dos "security tokens", não são qualificados como instrumentos financeiros ao abrigo da legislação relativa a valores mobiliários vigente na maioria dos países.

O novo regulamento estabelece requisitos para os emitentes de criptoativos e para os prestadores de serviços de criptoativos (CASP, na sua sigla em inglês). Os primeiros ficam sujeitos à obtenção de autorização e supervisão por parte das autoridades nacionais competentes (caso se trate de emitentes de ARTs ou EMTs), a fornecer informação completa e transparente sobre os criptoativos que emitem, ficando igualmente sujeitos a requisitos prudenciais estabelecendo um conjunto de standards para os operadores deste setor. É igualmente obrigatório o registo dos prestadores de serviços de criptoativos, bem como a implementação de medidas de segurança e o cumprimento da normativa vigente em matéria de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Cumpre ainda esclarecer, a propósito das autoridades nacionais competentes, que se aguarda agora por legislação nacional complementar que designe as autoridades competentes e o regime sancionatório aplicável à violação dos deveres estabelecidos pelo MiCA. 

De fora do seu âmbito ficam recentes paradigmas como é o caso da indústria DeFi (Decentralised Finance), o financiamento com criptoativos, as denominadas security tokens, as tokens não fungíveis (NFT) e as moedas digitais emitidas por bancos centrais com essa prerrogativa (CBDC). Todas estas figuras, ou já têm a sua própria regulamentação de acordo com a sua natureza, ou envolvem particularidades que carecem de análise e estudo adicional para que os legisladores possam configurar um quadro regulamentar adequado aos riscos que estas realidades representam.

A par de tudo isto, o MiCA procura reduzir o impacto ambiental envolvido na utilização de alguns criptoativos. Recorde-se que a mineração de algumas criptofichas (o processo de validação de transações e de adição de novas unidades à cadeia de blocos descentralizada) requer potentes equipamentos eletrónicos que consomem grandes quantidades de energia elétrica e gera um elevado volume de resíduos eletrónicos dado o rápido desgaste destes equipamentos.

Em termos gerais, o MiCA proporcionará segurança regulamentar e maior proteção aos consumidores neste mercado, ao passo que incentiva a inovação. Para atingir estes objetivos, estabelece, entre outros, mecanismos que visam garantir que as stablecoins são verdadeiramente estáveis, que existe um maior grau de transparência no mercado, que os intervenientes neste ecossistema não apresentam níveis de risco acima do aconselhável, e que os ativos sob custódia por parte dos prestadores de serviços nesta área se encontram verdadeiramente protegidos.

Num plano mais abrangente, o MiCA é concebido como parte de um esforço regulamentar mais vasto, que inclui iniciativas como o Regulamento Digital Operational Resilience Act (DORA), o Regulamento do Regime-Piloto DLT ou o Regulamento relativo à Transferência de Fundos (TFR). Por um lado, o DORA estabelece normas para o desenvolvimento e a manutenção de medidas de segurança nas organizações do setor financeiro e em terceiros que prestam serviços conexos, como a computação em nuvem ou a análise de dados.

Por outro lado, o Regulamento-Piloto DLT visa desenvolver infra-estruturas-piloto de mercado para a emissão, negociação e liquidação de security tokens utilizando a tecnologia DLT, e altera também a definição de instrumento financeiro incluída na Directiva MiFID II para incluir os instrumentos financeiros baseados na tecnologia DLT. E, por fim, o Regulamento de Transferência de Fundos (TFR), que se aplica às transferências de criptoativos e garante a transparência financeira nas trocas de criptoassets.

Sendo o MiCA, de facto, uma regulamentação pioneira no que toca aos mercados de criptoativos, que coloca a União Europeia como uma referência a nível mundial, não está isento de críticas. 

Embora o seu foco seja adequado, de modo a ser efetivo, este tipo de regulamentação deveria fazer parte de uma abordagem coordenada a nível global, por organizações como o G20, com o propósito de estabelecer um caminho de maior transparência e segurança para os clientes e investidores. Numa realidade crescente de serviços financeiros descentralizados, sem fronteiras e acessíveis a todos, os riscos multiplicam-se, daí a importância de uma política global nesta matéria. 

A este respeito, a liderança do Banco Central Europeu (BCE) tem feito diversos apelos para um maior progresso na regulamentação, tendo Christine Lagarde instado as instituições europeias a trabalhar desde já num MiCA 2 para regular, também, o financiamento descentralizado (DeFi), juntamente com o staking (depósitos em moeda digital) e os empréstimos em moeda digital.

Até lá e com o início de aplicação do MiCA, é expectável que venhamos a assistir à entrada e desenvolvimento de operadores deste setor em jurisdições europeias que se revelem mais atrativas e confortáveis deixando os cidadãos europeus à margem de futuras inovações neste sector.