High & Dry

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Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

TRIBUNA de Jorge Silveira Botelho, responsável de Gestão de Ativos da BBVA AM Portugal.

Pandemias, secas, guerras e choques energéticos, não são propriamente eventos que ocorram com muita frequência, muito menos quando os mesmos sucedem quase simultaneamente. Daí, que o estigma criado sobre o regresso do risco estrutural de uma espiral inflacionista tenha sido sempre desajustado e amplificado por este conjunto inusual de eventos.

Não surpreende ninguém que o ano de 2023 será de transição do ciclo monetário, porque a remoção tão abrupta dos estímulos monetários e de liquidez numa economia tão endividada e sensível à política monetária, num período tão curto de tempo, mais tarde ou mais cedo, iria trazer alguma coisa à tona da água, deixando a economia High & Dry

Verificámos isso mesmo há seis meses atrás, com a falência técnica dos fundos de pensões ingleses, o que obrigou o Banco Central Inglês a ajustar a sua política monetária. E neste mês de março, o sistema financeiro americano ficou também literalmente High & Dry, com os bancos regionais dependentes de linhas especiais da Fed e atolados com preocupações acrescidas para financiar os empréstimos do mercado imobiliário comercial. Depois de uma corrida desenfreada aos depósitos, de uma reversão de uma política de retirada de liquidez do sistema para garantir a solvabilidade do mesmo e de um maior endurecimento das condições creditícias na economia, fruto de um setor bancário mais fragilizado, não faz qualquer sentido pensar em subidas de taxas de juro.

De facto, até foi estranho que a comunidade financeira (analistas, economistas e membros de Bancos Centrais) tenha achado normal que a Fed subisse as suas taxas de juro diretoras em 25 p.b. na última reunião de março passado. Foi de tal maneira, que ficou a sensação que esta crise financeira iria atrasar a Fed no combate à inflação e que as novas circunstâncias foram, acima de tudo, um incómodo indesejado, porque impediram agora a Fed de subir mais agressivamente as taxas de juro, o que sem dúvida era um caso de uma grande frustração… Mas desenganem-se, porque esta crise financeira nos EUA ainda está longe de estar integralmente resolvida e as suas implicações vão ser extremamente desinflacionistas, numa altura em que já se multiplicam há alguns meses sinais evidentes de contração da economia americana.

As atas da última reunião da Fed que vão ser publicadas hoje deverão dar os primeiros indícios de que algumas coisas vão ter de mudar. Mas no princípio de maio vão-se desenrolar dois acontecimentos que se interligam entre si e que vão reforçar a nossa tese de maior abrandamento e desinflação da economia americana, obrigando a Fed a alterar o seu posicionamento e a adotar uma política monetária mais balanceada entre os riscos de inflação e de crescimento na próxima reunião de política monetária, entre 2 e 3 de maio.

O primeiro que antecede a reunião da Fed é a publicação no dia 1 de maio do relatório sobre a recente crise bancária.

Independentemente das questões políticas que vão seguramente emergir com a alteração do espetro de supervisão mais apertada por parte da última administração americana, vão também emergir problemas de deficiência de supervisão e de modelização, que nada têm a ver com questões políticas e que na prática são estritamente da responsabilidade da Fed. Sabendo-se como são estas coisas, o que vai ser óbvio esperar deste relatório são recomendações sobre o aumento de requisitos de capital e de incremento dos rácios de cobertura de liquidez dos bancos de menor dimensão, os quais representam 80% do crédito do imobiliário comercial e 60% do crédito do imobiliário residencial e cerca de 40% do total dos empréstimos bancários (fonte: Goldman Sachs). O que se vai aferir é que independentemente das recomendações não terem de ser implementadas de imediato, implicitamente a gestão e os acionistas destes bancos irão manter um maior foco na desalavancagem dos balanços.

O segundo evento terá lugar no dia 8 de maio e é posterior à reunião da Fed. Trata-se da publicação do relatório sobre as atuais condições creditícias da economia, Fed Senior Loan Survey, mas para as quais a Fed como produtor desta informação terá certamente acesso previamente a muitos dos dados relevantes.

Se na realidade, estas condições já se tinham tornado extremamente restritivas em janeiro último, imagina-se agora o que vão ser. Quais as expetativas nos inquéritos sobre o uso dos cartões de crédito, o crédito automóvel ou no financiamento do imobiliário residencial e comercial?…

FED: Senior Loan Survey (31/01/2023)

Posto isto, é difícil de imaginar que alguém ainda pense que a economia americana está em risco de sobreaquecimento, porque a realidade empurra-nos para o sentido contrário. Há que reconhecer que a Fed colocou a economia em High & Dry e que a inflação passou a ser o menor dos seus problemas daqui para a frente. Parece-nos por isso inevitável que a Fed desça as taxas de juro na segunda metade do ano e quanto mais tempo demorar a fazê-lo, mais agressivos vão ter de ser posteriormente os movimentos de descidas…

Sempre que o diferencial entre as taxas de juro a 2 anos e a taxa dos FED Funds se torna negativo a Reserva Federal Americana desce as suas taxas de juro…

Para muitos pode parecer um contrassenso, quando falamos do risco de uma recessão americana e mantemos uma visão construtiva em ativos de risco em termos globais. Mas em boa verdade, as três grandes ideias que para nós atualmente emergem deste High & Dry da economia americana, são aquelas que tínhamos implementadas nos nossos portefólios este ano e que continuamos a defender como válidas:

- Mantemos uma visão positiva no euro versus dólar. A maior resiliência da economia europeia derivado de melhores contas públicas, de maiores poupanças acumuladas durante o COVID por gastar, reversão mais lenta do ciclo monetária e por ironicamente, um mais sólido e bem capitalizado sistema financeiro…

- Mantemos uma visão positiva nas obrigações de longo prazo de elevada qualidade creditícia. No atual contexto, a dívida pública de longo prazo oferece simultaneamente rentabilidade e proteção. Não se trata apenas de uma questão de que passámos o pico da inflação, mas sim de que processo de desinflação é real.

- Mantemos uma visão positiva nos mercados acionistas globais. Apesar de persistir alguma incerteza, continuamos a ver diferentes regiões, distintos setores e muitas empresas a continuarem a demonstrar uma grande capacidade de geração sustentada de resultados operacionais. Se por um lado, a recuperação gradual da economia chinesa vai poder amortecer parte do maior abrandamento da economia americana, por outro lado, a desinflação vai gradualmente reverter as condições de High & Dry. Por fim, a própria desinflação vai promover a queda das taxas de juro de longo prazo, o que vai ser um importante suporte para os mercados acionistas globais, ao tornar mais atrativo o prémio de risco.  

Como sabemos, vivemos em tempos complexos e que mudam muito rapidamente. São tempos que exigem uma análise constante e muita ponderação. Não podemos ser reféns de anacronismos, de ideias feitas e muito menos demitirmos de procurar pensar por nós próprios, se não corremos o risco de também ficarmos High & Dry!