Quando se corre atrás dos bancos centrais...

Jorge Silveira Botelho. BBVA AM Portugal
Jorge Silveira Botelho. Créditos: Vítor Duarte

COLABORAÇÃO de Jorge Silveira Botelho, responsável de Gestão de Ativos da BBVA AM Portugal.

Têm-se discutido em excesso os riscos do efeito de uma segunda vaga de inflação provocada pelos aumentos salariais, mas parece que ainda falta fazer um diagnóstico sério sobre as verdadeiras causas da subida e da consequente queda da inflação. Ao mesmo tempo, ainda se está por aferir o efeito potencial do contrapeso desinflacionista que está associado aos ganhos de produtividade provocados pela adoção generalizada da Inteligência Artificial generativa.

Depois da forte subida da inflação era difícil prever uma queda tão rápida, sobretudo se esta ocorre sem uma recessão severa associada. Do mesmo modo, parece interessante compreender que faz pouco sentido, procurar diferenciar a inflação subjacente (ou inflação core, a que exclui os efeitos dos preços de energia e dos bens alimentares) da inflação geral, quando existiu um conjunto anormal de choques de grande magnitude nas economias, como aqueles que se processaram com a pandemia, com a guerra na Ucrânia e a consequente crise energética. A razão é simples, foram esses choques que provocaram tremendos efeitos indiretos e diretos, transversais a todos os bens e serviços, que nada têm a ver com os efeitos sazonais que tipicamente estão associados à criação do conceito que diferencia a inflação subjacente da inflação geral. Sempre que há um choque da natureza que tivemos, a inflação subjacente acompanha rapidamente a subida, mas demorará o seu tempo a convergir para inflação geral, mas a tendência está bem definida. 

EUA: Evolução do deflator do consumo privado: geral e subjacente

Fonte: Bloomberg, BBVA AM Portugal

Por outro lado, se durante a pandemia, no caso americano existiu um conjunto alargado de estímulos à procura que tiveram numa primeira fase algum impacto inflacionista, na Europa nada disso se verificou, o que explica o débil desempenho económico da zona euro. De facto, nada mais ilustrativo para explicar esta diferença de políticas económicas, que o enorme diferencial das vendas a retalho entre a zona euro e os EUA nos últimos quatro anos, que em termos nominais acumulados subiram apenas 1.46%, e em termos reais acumulados caíram -16,19%, enquanto nos EUA no mesmo período subiram 34,4% e 15.74%, respetivamente…

EUA e zona euro: evolução das vendas a retalho, nominais e reais

Fonte: Bloomberg, BBVA AM Portugal 

Também é importante ter em conta que a inflação não é mais baixa atualmente, porque um dos fatores que mais tem contribuído para a subida da inflação subjacente, sobretudo nas economias desenvolvidas, e em particular nos EUA, é o mercado imobiliário residencial. E é por isso importante enquadrar que a génese deste problema é a debilidade estrutural da oferta que dificilmente se resolve com taxas de juro elevadas. De facto, a resolução do problema do imobiliário residencial passa por incentivar o investimento com taxas de juro mais baixas e com a promoção de políticas públicas assertivas que permitam estimular a oferta. Uma solução simples é a de criar mecanismos que permitam transformar o excesso de oferta de espaços de escritórios em habitação residencial, resolvendo-se em muitos casos dois problemas atuais de uma só vez.

É por estas razões que não devemos ser tentados a cair na ilusão de que a vertiginosa descida da inflação é fruto das subidas das taxas de juro. Em boa verdade, apenas parte dessa descida da inflação pode ser reivindicado pelos bancos centrais.

Parece, por isso, que os efeitos de uma segunda vaga de efeitos inflacionistas não parecem ter espaço para se materializar, a não ser se estivermos de novo perante um novo choque energético, ou nos debatermos com um conjunto de sérias disrupções nas cadeias de produção e distribuição, ou se ainda tivermos mais um forte rerating do mercado imobiliário

À parte deste enquadramento, podemos admitir que existem riscos de uma maior inflação estrutural do que no passado, pelos temas inerentes ao maior risco do protecionismo, ao maior controle das cadeias de distribuição, aos temas relacionados com o custo da transição energética e algumas questões inerentes a uma maior falta de mão de obra disponível. No entanto, não podemos colocar de fora da discussão da inflação estrutural o contrapeso desinflacionista dos ganhos de produtividade subjacentes à introdução de novas tecnologias disruptivas, como é o caso da Inteligência Artificial generativa, quer ao nível da indústria, quer ao nível do setor dos serviços.

Ao longo das últimas décadas, o mundo passou por uma série de saltos de produtividade, como o investimento em infraestrutura do pós-guerra na década de 1950, a introdução dos computadores pessoais na década de 1980 e a internet na década de 1990. Cada um destes eventos provocou aumentos de produtividade de cerca de 1 a 3%. A Goldman Sachs estima que em 10 anos os ganhos de produtividade na economia global podem ser de 1,5% com adoção mais transversal da IA, o equivalente a sete biliões de dólares, mas em contrapartida, um recente estudo da consultora Oliver Wyman aponta para possibilidade de poupanças de 20 biliões de dólares até 2030.

Quaisquer que sejam os valores, não faz grande sentido ignorar o potencial de ganhos de produtividade que estão subjacentes à adoção da Inteligência Artificial generativa, em especial no setor de serviços, que se transformará num bem muito mais transacionável, onde a fixação de preços deixa de ser local para passar a ser internacional. Para além disso, a revolução tecnológica vai provocar uma profunda alteração dos padrões de consumo, consubstanciando a valorização do usufruto de bens em detrimento do sentimento de posse. Mas também na indústria são evidentes os ganhos inerentes ao uso da robótica e da automatização de processos, ao mesmo tempo que a tecnologia associada à economia circular vai permitir uma muito maior eficiência na gestão de recursos.

EUA: evolução da produtividade dos serviços versus indústria (Q4 2019-Q4 2023)

Fonte FT, BEA

Falar de inflação e de produtividade é inevitavelmente também discutir o atual nível das taxas de juro. Aquilo que hoje sabemos é que o atual hiato entre as taxas de juro diretoras e os dados da inflação só podem expressar algum desconforto, tanto na Europa como nos EUA, na medida em que a política monetária já se encontra em níveis claramente restritivos e ainda se estão por sentir alguns dos seus efeitos retardados na economia.

Daí que parece ser uma perda de tempo, querer-se constantemente descontextualizar o que realmente provocou a forte subida e descida da inflação e ignorar o choque de produtividade que se avizinha.

Os mercados financeiros, tanto de taxas de juro como acionistas, podem andar entretidos no curto prazo, em tentar adivinhar quando é que a Fed e o BCE vão começar a cortar as suas taxas diretoras, e quem vai ser o primeiro a fazê-lo. Mas objetivamente isso é cada vez mais irrelevante...

O que realmente interessa é que por mais que os Bancos Centrais prolonguem durante uns meses a inevitabilidade de um corte das suas taxas de referência, já estamos envoltos no início de um novo ciclo monetário. Mas ainda mais importante é o que podemos estar a deparar-nos com a materialização da perceção de que este ciclo de descidas de taxas de juro graduais se vai prolongar por alguns anos, uma vez que, a atividade e os ganhos de produtividade associados, assim o vão permitir

 E é, acima de tudo, com base neste enquadramento sobre inflação, produtividade e taxas de juro que, no essencial, os investidores devem fazer as suas opções de investimento de longo prazo, em vez de tentarem acertar no timing errático dos Bancos Centrais, porque esse em muitas das ocasiões ocorre já fora do tempo certo.