AIFMD II – O Bom, o Mau e o Vilão

Maria Carvalho Martins. Créditos: Cedida (Sofia Leite Borges & Associados)

TRIBUNA de Maria Carvalho Martins, associada coordenadora da Sofia Leite Borges & Associados.

Quem não ouviu falar no western spaguetti de Sérgio Leone, que versa sobre uma história itinerante de três homens em busca de uma quimera, no caso uma fortuna em dinheiro (200 mil dólares) enterrada num cemitério. Um deles, Setenza (o Mau), mata dois homens e um rapaz com o objetivo de localizar o dinheiro. Por outro lado, Joe (o Bom) e Tuco (o Vilão), são sócios na vigarice, mas um golpe fracassado separa-os, voltando a unir-se, quando encontram um soldado moribundo, que revela ao Vilão a localização dos 200 mil dólares: num cemitério, mas só ao Bom, confessa em que campa se encontra o tesouro escondido. Ambos chegam ao cemitério, onde o Mau os esperava. 

No dia 25 de novembro de 2021, a Comissão Europeia publicou o anteprojeto da AIFMD II1, e que surge no contexto do Plano de Ação 2020, para a plena integração na União dos Mercados de Capitais. Neste contexto, a AIFMD II, será a caixa dos 200 mil dólares, os Bons são os GFIAs, os Maus o BCE e o ESRB e os Vilões a ESMA e as ANCs, e que surge no contexto do Plano de Ação 2020, para a plena integração na União dos Mercados de Capitais. 

Fruto do normal processo legislativo europeu, este anteprojeto inicial, foi objeto de alterações, melhor explicadas no texto de compromisso (compromise text), publicado no dia 16 de maio de 2022, pelo Parlamento Europeu, e é sobre este, que o artigo se vai debruçar, contemplando os aspetos de maior impacto.

Os Maus e os Vilões

O Mau (o BCE), por sua iniciativa, publicou no dia 9 de agosto de 2022, um texto de comentário ao anteprojeto da AIFMD II, dizendo que deveria ter acesso a dados detalhados sobre os Bons, por forma a cumprir com as suas competências atribuídas pelos Tratados da União Europeia na definição e implementação da política monetária, contribuindo para a estabilidade do sistema financeiro. Assim, a Vilã ESMA, deverá receber essa informação ao abrigo dos artigos 24.º e 27-º da AIFMD I e II e disponibilizá-la aos Maus (o BCE e os Bancos relevantes do Eurosistema), devendo a Comissão adotar um ato delegado, que preveja os mecanismos através dos quais a Vilã ESMA deve enviar essa informação.

Finalmente, o Mau (BCE) como gatekeeper da estabilidade do sistema financeiro, sugere que na ótica de prevenção do risco sistémico e em alturas de grande stress dos mercados conducentes a situações de pouca liquidez, que os Bons utilizem, não apenas um instrumento de gestão de liquidez, mas dois pelo menos2. Refira-se, que as pretensões do BCE, não constituem grande novidade, uma vez que em 29 de janeiro de 2021, outro Mau (o ESRB3) já havia feito propostas semelhantes. Institucionalmente, preside ao ESRB, a Presidente do BCE.

A caixa dos 200 mil dólares (anteprojeto da AIFMD II na sua versão de maio de 2022)

Esta caixa, contém um tesouro de que os Bons (os GFIAs) vão beneficiar com a ajuda dos Vilões (ESMA e ANCs), pois quem sabe gerir FIAs necessita das Orientações da ESMA que desenvolvem as normas técnicas preconizadas cirurgicamente pelo anteprojeto da AIFMD II em relação a certos temas específicos, e da cooperação das ANCs quanto às informações relativas ao cumprimento da AIFMD II e das Orientações da ESMA.

Vamos descobrir em seguida o conteúdo deste tesouro:

  1. Simplificação do regime da concessão de empréstimos (loan origination) - neste tema o anteprojeto da AIFMD II, prevê: 
  • Uma proibição do modelo originate-to-distribute, isto é, os FIAs cuja estratégia de investimento seja a concessão de empréstimos com o propósito único de venda em mercado secundário;
  • A possibilidade a venda pelos FIAs do empréstimo em mercado secundário com outra filosofia, ou seja, como oportunidade de saída antecipada de um empréstimo, que foi feito originalmente com o objetivo de permanência até à sua maturidade. O mesmo deverá aplicável, a empréstimos vendidos antes da maturidade e que foram mantidos por um período considerável4 com o objetivo de obter ganhos.
  • Que a concessão de empréstimos seja possível, quer para os FIAs fechados, quer para os FIAs abertos – mas neste último caso o GFIA tem que ter a capacidade de demonstrar à ANC do seu Estado-Membro de origem, que possui sistemas de gestão de liquidez robustos5;
  • Que se os FIAs quiserem emprestar a um único mutuário que seja uma instituição financeira, uma empresa de investimento, outro FIA ou OICVM6, este empréstimo está limitado a 20% do capital do FIA, dos seus compromissos ou subscrições;
  • Os GFIAs que concedam empréstimos devem assegurar, que a alavancagem na concessão do empréstimo do FIA por si gerido, não excede mais de 150% do valor global líquido do Fundo. Este limite é igualmente aplicável, no caso de o FIA ganhar exposição a um empréstimo através de um Special Purpose Vehicle (SPV), que origine o empréstimo, para ou em nome do FIA ou do GFIA, e
  • Os GFIA, devem assegurar que o FIA mantém por dois anos a partir da data da assinatura ou até maturidade (o que for mais curto) 5% do valor nocional dos empréstimos tenha concedido ou comprado a uma SPV.
  1. Instrumentos de Gestão de Liquidez - IGLs (Liquidity Management Tools- LMTs)

O anteprojeto da AIFMD II, prevê que os GFIAS podem recorrer aos seguintes IGLs constantes do novo Anexo V: a suspensão dos resgates e subscrições, portas de resgate (redemption gates), períodos de pré-aviso, comissões de resgate, swing e/ou dual pricing, taxa anti-diluição, resgates em espécie e side pockets. Os GFIAs terão sempre a responsabilidade primária, pela decisão de ativação ou desativação dos IGLs.

Dos IGLs, anteriormente identificados, os GFIAs, terão que escolher dois7 IGL em complemento à possibilidade de suspensão dos resgates ou de ativação dos side pockets. A título de derrogação desta regra, o GFIA de um FIA aberto autorizado como Fundo do Mercado Monetário (MMF), pode selecionar apenas um dos IGL constantes do novo Anexo V da Diretiva. Todavia, os GFIAs terão que aguardar pelas Orientações da ESMA, que determinarão quais os critérios de seleção e uso dos IGLs.

  1. Depositários

A proposta original da AIFMD II (de 2021) continha uma noção de passaporte do depositário, que foi abandonada nesta versão do anteprojeto de maio de 2022, que prevê, que o GFIA tem que efetuar um pedido fundamentado onde demonstre que os serviços de depositário são escassos e o mercado nacional de depositários do GFIA deverá satisfazer certas condições, sendo que a ANC do GFIA fará uma avaliação prévia, casuística, antes de autorizar o recurso pelo GFIA a um depositário fora do seu Estado Membro.

  1. Atividades

O anteprojeto da AIFMD II, vem clarificar que em complemento dos serviços auxiliares previstos na AIFMD, os GFIAs podem desenvolver qualquer outro serviço auxiliar de investimento não regulado pela DMIF II, (por exemplo administração de benchmark e serviços de crédito permitidos pela legislação da União) que represente uma continuação dos serviços já prestados, desde que, se o fizer, isso não crie situações de conflito de interesses.

Conclusão

A AIFMD I, estreitou a regulação dos FIA, através da regulação dos GFIAS em matéria de gestão de liquidez, da utilização da alavancagem e da gestão de riscos ao nível dos fundos.

O balanço de oito anos de funcionamento da AIFMD I, é positivo já que de acordo com o relatório estatístico da ESMA publicado a 22 de fevereiro de 2022, os FIA da União Europeia, tinham no final de 2020, um volume de AuM de 5.9 triliões de euros do seu valor global líquido, constituindo um aumento de 8% face ao ano de 2019.

Todavia, como resulta do anteprojeto da AIFMD II, a regulação dos GFIAs no âmbito da AIFMD I, não foi suficiente para abranger certas especificidades, como por exemplo a gestão de FIAS que concedem diretamente empréstimos, propiciada pela divergência dos quadros regulatórios nacionais, acabam por comprometer a convergência da União dos Mercados de Capitais. Acresce o facto, de a informação recebida pelas ANC ter lacunas, não lhes permitindo avaliar e identificar os riscos, e a repercussão destes no sistema financeiro em geral.

AIFMD II

Depois da publicação deste anteprojeto da AIFMD II de maio de 2022, seguir-se-á um diálogo para negociações, entre a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho, com vista a alcançar a versão final do texto da AIFMD (o que virá a acontecer somente no início de 2023), podendo este sofrer novas alterações, seguida da respetiva publicação no jornal oficial comunidade europeia. A transposição para o ordenamento jurídico interno dos Estados Membros terá por isso que ser concluída em 2025.

Fazemos votos de que os Bons (GFIAs) continuem a fazer o que melhor sabem: gerir FIAs, contando com uma efetiva e necessária cooperação das Vilãs (ESMA e ANCs), contribuindo para a prevenção do risco sistémico e para a estabilidade do sistema financeiro, sempre sob o olhar atento do Mau (o BCE).

Lista de Acrónimos

GFIAsGestores de Fundos de Investimento Alternativo
BCEBanco Central Europeu
ESRBEuropean Systemic Risk Board
ESMAEurpean Securities and Markets Authority
ANCsAutoridades Nacionais Competentes
FIAsFundos de Investimento Alternativo
DMIF IIDiretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio, relativa aos mercados e instrumentos financeiros
AuMAssets  under Management

1 Este anteprojeto visa alterar a Diretiva 203/61/CE, diretiva originária ou AIFMD I, relativa aos Gestores de Fundos de Investimento Alternativos (GFIA).

2 Proposta 3 do BCE, de alteração do ponto (6) do artigo 1.º da AIFMD – cf. artigo 16 (6) – 2.b. do anteprojeto da AIFMD II.

3 ESRB – European Systemic Risk Board.

4 O texto do anteprojeto não define, contudo, o que se considera ser “um período considerável”. Possivelmente, a ESMA através do desenvolvimento de normas técnicas, venha a contribuir para a densificação deste conceito.

5 O critério para aferição da robustez da liquidez, será densificado pela Comissão através de normas técnicas de nível 2.

6 OICVM – Organismo de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários.

Conferir a nota de rodapé n.º 8 referente à proposta 3 do BCE.