António Marques Dias (Sixty Degrees AM): “É expectável que tenhamos um maior ajustamento negativo nos resultados das empresas no decurso do primeiro trimestre de 2023”

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António Marques Dias. Créditos: Cedida (Sixty Degrees)

TRIBUNA de António Marques Dias, diretor da Sixty Degrees Asset Management.

O mundo mudou bastante em 2022. Os acontecimentos deste último ano trouxeram grande incerteza às perspetivas económicas e geopolíticas de médio e longo prazo, o que se tem vindo a traduzir em acréscimos de volatilidade e desvalorizações nos mercados financeiros que assim justificam os maiores prémios de risco, tanto em ações como em obrigações, desde a grande crise global de 2008.

A dinâmica de subida de inflação, que já se vinha a manifestar desde o final do ano anterior, levou ao crescimento dos preços na Europa acima dos 10% (YoY) e despoletou um dos mais agressivos ciclos de subidas de taxas de juro, por parte dos Bancos Centrais, com o intuito de a conter. Paralelamente, a maioria dos Bancos Centrais decidiu terminar os respetivos programas de compras de ativos, reduzindo a liquidez nos mercados financeiros e levando a movimentos mais amplos nos preços dos ativos, sempre que surge uma surpresa no mercado. A contração da Política Monetária além de ter tido um efeito direto negativo no preço dos ativos de risco, especialmente no segmento obrigacionista, poderá vir a provocar uma recessão em 2023. 

Adicionalmente, assistimos ao deflagrar de um conflito militar às portas da Europa, entre a Ucrânia e a Rússia. A Europa posicionou-se abertamente apoiando a Ucrânia e lançando sanções económicas sobre a Rússia, com impacto direto no volume e preço dos bens energéticos importados da Rússia. A escassez de bens energéticos e os constrangimentos logísticos associados ao abastecimento através de outros produtores, impactaram fortemente a indústria e o consumidor particular europeus. Por seu lado, o afastamento em relação à Rússia tem levado este país a estreitar relações com a Índia, a China e o Irão, que em bloco poderão vir a desafiar com sucesso o atual equilíbrio económico e geopolítico mundial.

Já na China, Xi Jinping foi reconduzido como líder para um terceiro mandato, nos próximos quatro anos, o que trouxe uma mudança nas prioridades chinesas em favor da segurança e em detrimento do desenvolvimento económico. A hipótese duma invasão chinesa a Taiwan continua a manter os seus aliados em alerta, especialmente os Estados Unidos, que declararam apoio explícito em caso de invasão, e criou uma fonte de incerteza sobre a nação responsável por parte significativa da produção mundial de semicondutores. Internamente, a contestação popular subiu de tom com protestos em algumas províncias motivados pelos efeitos da crise imobiliária que afeta a China desde 2020 e que levou ao congelamento das poupanças de cidadãos expostos a bancos regionais. Esta crise tem feito crescer as dúvidas não só sobre os construtores, mas também sobre o sistema bancário, muito exposto ao setor. Contrariamente ao resto do mundo, as autoridades chinesas mantiveram durante quase todo o ano a política de zero tolerância a casos COVID, com impacto relevante sobre o crescimento económico doméstico e tendo, mais recentemente, provocado novos protestos na rua contra o Governo, após um incêndio com vítimas mortais num edifício trancado devido a casos COVID. 

Com toda esta incerteza no final de 2022, o que se pode esperar de 2023? Será que o conflito entre a Ucrânia e a Rússia acabará rapidamente ou irá alastrar-se e durar muito mais tempo? Será que a China irá decidir invadir Taiwan? O abrandamento económico será forte e com repercussões ou assistiremos apenas ao suave ajustamento da economia a taxas de juro mais normais? Estará a inflação efetivamente controlada, voltando para cerca de 2% como pretendem os Bancos Centrais, ou o ciclo de aumentos das taxas de juro irá contribuir para o prolongamento da sua subida? Estas e muitas outras questões tornam 2023 num ano desafiante e muito interessante, onde o dinamismo da abordagem de investimento deverá ser chave.

Outlook para 2023

Com o custo do crédito mais elevado para os vários agentes económicos, devido à subida das taxas de juro, é natural que muitos prevejam um abrandamento da atividade económica em 2023. Nesse sentido, é provável que os mercados venham a antecipar este abrandamento com novas quedas de preços. Muitas empresas estão já a diminuir os seus stocks de matérias-primas e ajustar a sua força laboral, deixando fortes pistas sobre as expectativas de abrandamento da sua atividade, algo que já vinha a ser observado nos últimos tempos através da diminuição do número de unidades vendidas. Assim, é expectável que tenhamos um maior ajustamento negativo nos resultados das empresas no decurso do primeiro trimestre de 2023 e que só posteriormente será possível medir a verdadeira extensão do abrandamento que agora se antecipa.

Já o afastamento da Rússia como exportador de energia para a Europa e consequente aproximação à China, Índia e Irão, deverá levar a um aumento dos custos energéticos no Velho Continente e a uma maior polarização do mundo, aumentando os custos das cadeias de produção espalhadas por estas geografias e que vendem os seus produtos nos EUA e Europa. No plano energético, com a escalada da regulação ESG e com a viragem das empresas petrolíferas para o investimento em energias renováveis, no lugar da exploração e produção de novos poços de petróleo, poderemos vir a assistir a movimentos abruptos no preço do ouro negro causados quer pela redução de stocks de petróleo ou produtos derivados (gasolina e gasóleo) em pontos específicos do globo, quer pelo restabelecimento dos stocks estratégicos de alguns países, com os Estados Unidos à cabeça face às vendas recentes de boa parte das suas reservas estratégicas.

Numa primeira fase, estes deverão ser os principais fatores a pressionar a economia global. 

Por outro lado, as subidas de taxas de juro, que tiveram um impacto significativo e negativo no mercado de obrigações, deverão originar um abrandamento no número de transações imobiliárias em 2023, com a taxa de crédito à habitação a 30 anos a atingir já valores próximos dos 7% nos EUA e de cerca de 4% a 5% na Europa. 

Adicionalmente, a potencial escalada do conflito entre a Ucrânia e a Rússia, com o envolvimento de armas mais letais ou o alargamento a outros territórios, poderá agravar a incerteza em torno da evolução da economia mundial. O impacto económico deverá ser ainda mais negativo caso se inicie mais algum conflito entre nações relevantes para o bom funcionamento das cadeias de abastecimento. Tal poderá ser o caso se a China decidir avançar para Taiwan, onde os últimos são responsáveis por parte significativa da produção mundial de semicondutores e a China, caso venha a sofrer potenciais sanções económicas, poderá pôr em causa o fornecimento de muitos bens essenciais para o funcionamento de muitas indústrias.

Caso nenhum destes choques negativos se materialize, o mercado de ativos de risco deverá registar uma rentabilidade que remunere os investidores pela falta de materialização da incerteza descontada. A situação em 2023 deverá manter-se fluída e por isso o investimento nas várias classes de ativos deverá ser dinâmico e adaptativo aos vários cenários possíveis.

Ações

Apesar de ser razoável admitir um potencial choque negativo no preço das ações no início de 2023, em função do ajustamento em baixa dos resultados das empresas por redução nas vendas e aumento dos custos, as ações continuam a ser o ativo de risco preferido para a obtenção de retorno

A maioria das grandes empresas sai deste ciclo de taxas de juro baixas com balanços sólidos, custos controlados, fruto do impacto da pandemia, e com uma maior visibilidade sobre o seu negócio, devido à utilização massiva de dados. Esta realidade é mais presente nos Estados Unidos, onde o dinamismo da economia cria inúmeras oportunidades de crescimento que podem ser exploradas de modo eficiente pela interpretação de dados devidamente tratados. As empresas americanas saem ainda beneficiadas deste ciclo em resultado da força do dólar, em relação às outras moedas, que lhes permite olhar para as empresas do resto do mundo numa perspetiva aquisitiva. 

Assim, na nossa opinião relativamente à escolha geográfica, é preferível a exposição aos Estados Unidos relativamente à Europa, até porque esta última região continua a enfrentar o caos burocrático na tomada de decisões estruturantes, depara-se com uma crise energética de dimensões ainda desconhecidas, com impacto relevante sobre a sua indústria, e tem uma guerra de resolução imprevisível à porta, que pode desencadear um incidente menos agradável no bloco europeu. 

Setorialmente, poderá ser interessante manter um olhar atento sobre oportunidades no setor tecnológico, nomeadamente na produção de semicondutores nos Estados Unidos ou no espaço de cybersegurança, no setor energético, especialmente em empresas que possam abastecer a Europa e tenham recursos provados por explorar, ou mesmo na banca, caso as taxas de juro estabilizem e não exista um aumento significativo da taxa de falências.

Investimento em mercados emergentes

Em relação ao investimento em mercados emergentes, é necessário dividir a China dos restantes países. A China enfrenta problemas económicos internos que podem ser debilitantes do poder de consumo, nomeadamente pelo impacto negativo do mercado imobiliário, mas algumas empresas exportadoras parecem transacionar a múltiplos muito atrativos. No entanto, não é possível descurar o risco político, as alterações inesperadas na legislação ou o congelamento dos ativos em caso de conflito armado, pelo que se aconselha muita prudência a quem quiser estudar e investir no país. Relativamente aos restantes mercados emergentes, por muito baratos que possam parecer, não é expetável assistirmos a um movimento de apreciação sustentável e continuado sem a suspensão das subidas de taxas de juro por parte da Reserva Federal norte-americana. Muitos destes mercados emergentes e respetivas empresas têm vindo a financiar-se em dólares dos EUA, pelo que o impacto do aumento real dos custos de financiamento, resultado da subida das taxas de juro e da valorização do dólar, só será visível nos próximos 12 meses. Caso as taxas de juro norte-americanas parem de subir, será mais fácil estimar o impacto nos diferentes países e os agentes de mercado poderão voltar a investir neste segmento. Porém, a valorização do dólar poderá continuar a pesar sobre estes mercados, uma vez que depende de muitos outros fatores além do diferencial de taxas de juro.

Obrigações

Após vários anos de taxas baixas, zero ou mesmo negativas, esta classe de ativos volta a apresentar uma rentabilidade positiva para os títulos que forem detidos até à maturidade. Uma vez mais, mantemos a preferência por obrigações do espaço norte-americano que conjugam taxas de remuneração superiores e estão potencialmente menos expostas a choques binários negativos, ou seja, a possibilidade de materialização de cenários de rápida degeneração da qualidade dos ativos, sejam eles resultantes dum conflito armado ou do agravamento exógeno dos custos de produção, (ex. escalada dos preços da energia).

As obrigações de tesouro americano já apresentam um rendimento potencial atrativo, mas são ainda esperadas algumas subidas de taxas de juro por parte da Fed. Caso a situação económica se degrade rapidamente, esta poderá ser uma classe de ativos a ter em conta, especialmente se o abrandamento económico for severo que obrigue a Reserva Federal Americana a reverter algumas das subidas recentes das taxas de juro diretoras.

No segmento de crédito empresarial, os spreads de crédito já são de algum modo atrativos, em comparação com as taxas de falência registadas, mas, como sublinhado anteriormente, a situação permanece fluída. É por isso importante notar a menor liquidez nestes mercados desde que os programas de compra de ativos por parte dos Bancos Centrais terminaram.

Já na Europa, uma vez que as taxas de juro se mantêm mais baixas que nos Estados Unidos e o Banco Central Europeu ainda tenta controlar os prémios de risco dos vários países face aos títulos de dívida da Alemanha, torna-se menos atrativo investir. Na realidade, o verdadeiro risco e a situação orçamental de cada país não estão corretamente refletidos nos preços de mercado.

No espaço dos mercados emergentes, o único segmento que poderá estar mais atrativo são as empresas exportadoras de matérias-primas, uma vez que os seus custos são denominados em moeda local e as vendas são maioritariamente em dólares. No entanto, será razoável esperar por um ponto de inflexão nos preços das matérias-primas que têm registado quedas significativas desde meados de 2022.

Matérias-primas

Com a polarização do mundo, o processo de globalização está efetivamente a dar um passo atrás. É por isso normal que o preço de algumas matérias-primas possa variar rapidamente e de forma acentuada, especialmente no caso das matérias-primas estratégicas para o setor da Defesa, como alguns metais-base, essenciais à produção de alguns componentes eletrónicos, ou bens energéticos. 

Com a crise energética que afeta atualmente a Europa, situação agravada pela guerra na Ucrânia e pela falta de investimento das empresas petrolíferas em novos recursos fósseis, devido à preponderância das políticas ESG que favorecem o investimento em energias renováveis, o preço dos bens energéticos poderá também vir a registar oscilações significativas durante o ano. 

Adicionalmente, com a guerra entre a Ucrânia e a Rússia, dois dos maiores exportadores de trigo do mundo, a questão da segurança alimentar voltou a estar em cima da mesa para muitos países que gerem os seus stocks de bens essenciais de modo dinâmico.  O preço dos bens alimentares deverá também continuar a subir em resultado do aumento dos custos relacionados com os fatores de produção (mão-de-obra, fertilizantes, impacto ambiental) e do aumento das reservas estratégicas por parte dos países que sentem a segurança alimentar dos seus cidadãos sob pressão.

O mercado cambial

Em 2022, o mercado cambial foi dominado pela valorização do dólar americano (USD) face à grande maioria dos seus pares. Esta apreciação relativa deveu-se não só à magnitude e ritmo das subidas de taxas de juro por parte da Reserva Federal, mas também ao clima de incerteza no futuro próximo em relação ao desenvolvimento económico e geopolítico do mundo. 

Para 2023, o diferencial de taxas de juro para as outras geografias poderá vir a diminuir, caso a reserva Federal reduza a magnitude das subidas de taxas de juro. Porém, a incerteza económica e geopolítica manter-se-á em níveis elevados, especialmente na fronteira da Europa, o que poderá ditar a continuação do dólar forte.

Apesar de uma nova valorização acentuada do dólar contra todas as moedas não ser de momento o cenário central, por prudência, pretendemos manter o nosso investimento diversificado, justificando, por isso, uma exposição ativa a dólares americanos. O USD deverá continuar forte até ao início da recessão que se antecipa, podendo então voltar a enfraquecer à medida que os investidores se começarem a focar na redução relativa das taxas de juro reais norte-americanas. Contudo, os conflitos geopolíticos existentes ou latentes, para os quais não parecem existir soluções óbvias, poderão ditar o renovado fortalecimento do USD em função dos fluxos de capitais internacionais para a moeda de reserva. Esta exposição deverá ser continuamente analisada durante o ano e ajustada de modo a adaptar o risco dos investimentos em carteira aos desenvolvimentos que ocorram.